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A democratização da produção orgânica

Uma maior capacitação dos produtores e mais pesquisa sobre métodos de produção são essenciais para a expansão da agricultura orgânica, principalmente para as pequenas propriedades. Assim, existe uma grande demanda por conhecimento técnico, acesso à informação e interpretação de resultados de pesquisas que muitos proprietários de pequenas propriedades não têm condições de adquirir ou entender.

Além do grande desafio técnico, exigido para tornar uma propriedade orgânica viável, também o agricultor precisa ter um bom conhecimento de marketing para diferenciar seus produtos dos mesmos provenientes de sistemas convencionais de produção. Ou seja, tanto o pequeno como o médio e grande proprietário rural precisam ter o conhecimento ou as condições de contratar alguém que entenda como transformar sua propriedade de sistema convencional de produção para um de sistema de produção orgânica.

A agricultura orgânica não é uma exclusividade da agricultura familiar. Várias grandes empresas já estão produzindo e/ou investindo em agricultura orgânica e têm expandido seus investimentos neste tipo de agricultura nas últimas décadas. Por um lado, esse movimento de grandes empresas na agricultura orgânica apresenta um paradoxo, pois vai contra as raízes mais sociais da agricultura orgânica. Por outro, esse movimento é um reconhecimento do valor da agricultura orgânica, que também pode acelerar o desenvolvimento tecnológico deste sistema de produção.

O que uma propriedade familiar produz?

Por outro lado, a agricultura familiar não produz somente produtos orgânicos. Na verdade, a grande maioria dos estabelecimentos de agricultura familiar produz produtos convencionais, muitas vezes, pela dificuldade de acesso às informações técnicas e, mais difícil ainda, à certificação orgânica, que demora, é complexa e cara para o pequeno agricultor. A falta de recursos financeiros extras para suportar o período de transição de um sistema convencional para um sistema orgânico é um dos grandes desafios para aumentar o número de propriedades rurais que produzem neste sistema.

Após o período de transição, à medida que a agricultura orgânica vai se consolidando, existe uma tendência de equilíbrio entre as diferentes dimensões da sustentabilidade. Nesse sentido, é preciso reforçar que as políticas voltadas para o desenvolvimento da agricultura orgânica não devem ser generalizadas. Essas políticas devem considerar as especificidades de cada grupo de agricultor e as diferentes dimensões (social, técnica, econômica, ecológica, política-institucional e outras) dando oportunidade aos agricultores tradicionais de migrarem para a agricultura orgânica.

Isso tem sido visto no programa de agricultura orgânica da APOI (Associação dos Produtores Orgânicos da Ibiapaba-CE), que é orientado para um sistema de produção sustentável acima de tudo.

Estas iniciativas mais sustentáveis são fundamentais para a sustentabilidade da agricultura como um todo. Isso porque a quantidade de terras disponíveis para agricultura por pessoa tem diminuído nas últimas décadas. Em1970, tínhamos 0,38 hectares per capita, mas em 2013 já havia caído para 0,2 hectares per capita, e a ONU estima que teremos apenas 0,15 hectares por habitante em 2050. Desta forma, cientistas e agricultores estão constantemente buscando alternativas mais sustentáveis como agroecologia, manejo integrado de pragas, doenças e plantas daninhas e agricultura orgânica. Ao mesmo tempo, muitos consumidores estão dispostos a pagar um preço mais alto pelos benefícios que estas técnicas e sistemas alternativos geram. Esta combinação é uma esperança para que possamos realmente expandir a sustentabilidade na agricultura.

A produção orgânica chegou a 750 mil hectares no Brasil em 2017, está presente em 22,5% dos municípios brasileiros e o número de propriedades se aproxima dos 16 mil. Entre os motivos para acreditar que esta expansão vai continuar estão o PNAE, as feiras- livres e a maior preocupação do consumidor com a origem de seus alimentos. Informações adicionais sobre os métodos de produção e definições dos sistemas de produção orgânicos podem ser encontrados nos sites do Ministério da Agricultura pelo sitewww.agricultura.org.br ou do Centro de Inteligência em Orgânicos no sitewww.ciorganicos.com.be. No entanto, existem várias barreiras para a expansão da agricultura orgânica e aqui vou focar em apenas duas das melhorias para superar estas barreiras: o aumento da produtividade e a simplificação da certificação.

Melhorar a produtividade

A baixa produtividade vem do baixo uso de insumos e tecnologias principalmente de pequenas e médias propriedades. Estimativas realizadas por vários pesquisadores sobre a capacidade da produção orgânica de alimentar os 7,7 bilhões de pessoas no mundo indicam que a diferença entre os sistemas atuais de produção de alimentos e um sistema de produção somente com técnicas orgânicas no mundo todo, reduziria em até 40% a produção atual de alimentos.

Isto seria um colapso para a humanidade, pois hoje produzimos mais do que necessitamos e, mesmo assim, temos centenas de milhões de pessoas passando fome no mundo. Imagine quantos mais estariam nesta situação se a produção atual fosse 40% menor do que necessitamos? Ao mesmo tempo, acredito que com a aplicação de tecnologia, melhor gestão da cadeia de produção e investimentos em educação e pesquisa podemos diminuir estas diferenças em produtividade entre agricultura orgânica e convencional.

Parte do motivo por ter baixas produtividades na agricultura orgânica é a fertilidade dos solos, em relação à qual se proíbe o uso de fertilizantes externos ou químicos. A flexibilização desta regra, com a aplicação somente quando necessária de fertilizantes, poderia aumentar consideravelmente o potencial da agricultura orgânica. Nas recentes décadas, houve um grande avanço em sensores de solo para medir a necessidade real de nutrientes das plantas e, a partir daí, liberar os nutrientes e suas quantidades necessárias às plantas e nada mais, evitando-se a contaminação ambiental.

Com relação à sustentabilidade econômica, existem vários exemplos das melhorias nas vidas de proprietários de pequenas propriedades que mudaram para o sistema orgânico, incluindo a produção de chá orgânico na China e Sri Lanka, o arroz orgânico nas Filipinas, o mel de abelha orgânico na Etiópia, o algodão orgânico na Índia e o abacaxi orgânico em Gana.

A condição para essas pequenas propriedades serem bem-sucedidas economicamente é o preço mais alto que os consumidores pagam pelos produtos orgânicos, que podem variar de 10 a 300% a mais, quando comparado com os preços dos produtos provenientes de sistemas convencionais de produção de alimentos. No entanto, o aumento no balanço positivo da renda da propriedade é altamente relacionado à quantidade de insumos externos que o produtor pode substituir por insumos obtidos dentro da própria propriedade. Mesmo assim, as propriedades com agricultura orgânica podem gerar entre 22 e 35% mais renda do que propriedades com sistemas convencionais em condições similares, de acordo com um estudo em que se analisaram dados de dezenas de países.

Com as melhorias econômicas das pequenas propriedades rurais, também se percebe a melhora na sustentabilidade social das comunidades rurais. O número de propriedades com sistemas orgânicos aproxima-se de 2 milhões no mundo, sendo que 80% destas estão em países em desenvolvimento.

Apesar de possuírem a maioria das propriedades orgânicas do mundo, os países em desenvolvimento são responsáveis por apenas 25% do total da área mundial que possui sistemas de produção orgânica. Ou seja, existe uma grande concentração de produção orgânica nos países desenvolvidos, fato que diminui consideravelmente o impacto social da produção orgânica nos países mais ricos. Isto pode ser verificado pela presença cada vez maior de grandes grupos no sistema de produção orgânica nestes países ricos.

Tornar a certificação mais acessível

O período de transição e o custo são os grandes desafios para produtores rurais conseguirem a certificação orgânica. Estes produtores têm tornado a transformação de uma propriedade rural em orgânica praticamente inviável economicamente para o pequeno e médio proprietário. No entanto, somente com a certificação, os produtores rurais garantem acesso ao mercado consumidor dos países desenvolvidos, os quais consomem 90% de toda produção mundial de alimentos orgânicos.

Além disso, a certificação assegura um preço maior pelo produto orgânico quando comparado com produtos orgânicos sem certificação. Desta forma, a certificação é essencial para produtores orgânicos que comercializam seus produtos em grandes redes varejistas do Brasil ou exportam seus produtos, mas não tem impacto algum na agricultura de subsistência, seja para o agricultor consumir boa parte de seus produtos, seja para trocá-los com seus vizinhos ou no mercado local.

Nos países em desenvolvimento, apenas 43% da população rural têm acesso aos centros comerciais em até duas horas de transporte motorizado. Para hortaliças e frutas, o tempo e as condições de transporte são essenciais para manutenção de sua qualidade e, portanto, do valor a ser pago pelo consumidor.

Produtores rurais de pequenas propriedades têm dificuldades financeiras para sobreviver durante os três anos de transição com baixas produtividades e comercializando seus produtos como convencionais. Uma alternativa para o custo alto das certificadoras tradicionais é o modelo de certificação participativa entre agricultores ou entre agricultores e consumidores, como o realizado pela Rede Ecovida e as CSAs (Veja o artigo “O comercio local de alimentos é crítico para a sustentabilidade social” neste blog para mais informações).

Para as grandes propriedades rurais que adotaram o sistema de produção orgânica, a certificação não é um problema. Na verdade, ela contribui para as grandes propriedades garantirem o retorno dos seus investimentos. No entanto, o desenvolvimento de grandes propriedades de produção orgânica, baseado em escala de produção, reduz ou elimina as contribuições sociais que este sistema de produção gera, quando as propriedades são pequenas ou médias. O componente social é uma das bandeiras da agricultura alternativa, desde o início da popularização destes movimentos na década de 1960, mas vem perdendo força com a entrada de grandes corporações e propriedades rurais neste mercado.

Para mitigar os desafios de conseguir a certificação, a colaboração entre produtores rurais e consumidores é indispensável. Para isso, as novas tecnologias podem auxiliar de duas formas na certificação “peer-to-peer”, ou seja, de agricultor ou consumidor para agricultor. A primeira é rastreando os produtos até a origem, indicando quem está produzindo e como está produzindo, incluindo quais as técnicas e insumos que o agricultor utilizou.

A segunda é a conexão entre o produtor e consumidor, em que o consumidor pode fazer um turismo virtual e até mesmo em tempo real pela propriedade rural na qual o produto que está consumindo foi produzido. Pode, inclusive, conversar ou deixar mensagens para a família produtora ou receber vídeos de como seu produto foi ou está sendo produzido. Até mesmo escolher um produto antes de comprá-lo.

Enfim, quando se confia, não existe necessidade de certificação ou contratos. O megainvestidor Warren Buffet diz que basta conhecer bem com quem você está negociando, para fechar um negócio sem ter que se prender a contratos. Assim, um dos principais requisitos para o sucesso do pilar social é a confiança entre os integrantes da comunidade rural e os consumidores.

Fontes de informação para este artigo

Jouzi, Z., Azadi, H., Taheri, F., Zarafshani, K., Gebrehiwot, K., Van Passel, S. Lebailly, P. 2017. Organic Farming and Small-Scale Farmers: Main Opportunities and Challenges. Ecological Economics 132 (2017) 144–154.

Oliveira, A.F.S., Khan, A.S., Lima, P.V.P., Silva, L.M.R. 2008. A sustentabilidade da agricultura orgânica familiar dos produtores associados à APOI (Associação dos Produtores Orgânicos da Ibiapaba-CE). XLVI Congresso da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural. Rio Branco, AC, 20-23 de julho 2008.

Kirchmann, H., Bergström, L., Kätterer, T., Andrén, O., Andersson, R., 2008. Can organic crop production feed theworld? Organic crop production–Ambitions and limitations. Springer, pp. 39–72.

Setboonsarng, S., 2006. Organic Agriculture, Poverty Reduction and the Millennium Development Goals. International Workshop on Sufficiency Economy, Poverty Reduction, and the MDGs Organized under the umbrella of the Exposition of Sufficiency Economy for Sustainable Development.

Crowder, D.W., Reganold, J.P., 2015. Financial competitiveness of organic agriculture on a global scale. Proc. Natl. Acad. Sci. 112 (24), 7611–7616.

Willer, H., Lernoud, J. (Eds.), 2015. The World of Organic Agriculture. Statistics and Emerging Trends 2015FiBL-IFOAM Report. Research Institute of Organic Agriculture (FiBL) and International Federation of Organic Agriculture Movements (IFOAM), Frick and Bonn.

Smale, M., Byerlee, D., Jayne, T., 2011. Maize Revolutions in Sub-Saharan Africa.

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Sobre o autor

Tederson é Engenheiro Agrônomo, PhD e MBA. Tem mais de 20 anos de experiência em pesquisa e desenvolvimento (P&D) de tecnologias aplicadas à agricultura. Também trabalhou nas áreas de estratégia e gerenciamento de produtos em multinacionais nos EUA, Brasil e Argentina. Além disso, atua como investidor-anjo de startups brasileiras. Atualmente, é diretor de P&D de uma startup que desenvolve tecnologias mais sustentáveis para o manejo de pragas na agricultura. Recentemente publicou o livro “Prato Meio Cheio, Meio Vazio: conquistas, desafios e alternativas para alimentar a humanidade sem destruir o planeta”.

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